A exclusão de direito à herança nos casos de indignidade: quem comete o crime pode herdar os bens da vítima?


O debate em torno da herança de Tatiane Spitzner, vítima de um brutal feminicídio, no ano de 2018, e o trânsito em julgado da sentença penal condenatória de seu marido e algoz, Luís Felipe Manvailer – condenado a mais de 30 anos de prisão, ocorrido no final do mês passado, tem repercutido na sociedade, trazendo à tona as seguintes questões:

Na qualidade de herdeiro necessário, poderá o autor do crime herdar os bens da vítima? Qual o procedimento legal a ser adotado pela família para evitar que isso aconteça?

O Código Civil sempre previu (artigo 1.814, inciso I c/c 1.815) a exclusão à herança de herdeiro considerado indigno (autores de crimes contra a vida, por exemplo), mas até a publicação da lei 14.661, em agosto de 2023 (com a introdução do artigo 1.815-A), essa exclusão não era automática, dependia da própria família (ou do Ministério Público) propor uma nova ação, na esfera cível, no prazo decadencial de 04 anos, para obter o reconhecimento da perda do direito à herança, a ser declarado por sentença.

No caso debatido, em que o crime e a abertura da sucessão da vítima ocorreram em 2018, a lei aplicável será a antiga, com a necessidade de continuidade da ação civil já proposta pela família, todavia, diante da condenação definitiva de Manvailer, o resultado final – a exclusão –, tende a ser o mesmo daquele que seria obtido se fosse aplicada a regra automática da lei atual.

O que muda é o caminho a ser percorrido, um pouco mais longo e doloroso, que é, justamente, o que a nova legislação procurou eliminar.

1. O Cenário Jurídico em 2018: A Exclusão por Indignidade que dependia de ação declaratória autônoma

Quando Tatiane Spitzner faleceu, em julho de 2018, a regra para a exclusão de um herdeiro considerado “indigno” estava prevista no artigo 1.814 do Código Civil, que exclui da sucessão os herdeiros que “(I) houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”.

O ponto crucial aqui não é o direito material em si — pois a lei já previa a exclusão do assassino —, mas sim o procedimento para que essa exclusão se efetivasse. Pela redação do artigo seguinte, 1.815, a exclusão não era automática, dependia do ajuizamento de uma ação declaratória de indignidade, que deveria ser proposta, no prazo decadencial de 04 anos, a contar da abertura da sucessão.

O grande fardo, e o que a sociedade passou a ver como uma revitimização, era impor à família enlutada o ônus de processar o assassino de seu ente querido mais uma vez, na esfera cível, para garantir que ele não se beneficiasse do patrimônio da vítima.

2. A Mudança com a Lei nº 14.661/2023: A Exclusão Automática do herdeiro indigno

Percebendo essa lacuna e o sofrimento imposto às famílias, o legislador promoveu uma alteração fundamental no Código Civil com a Lei nº 14.661, de 23 de agosto de 2023, que incluiu o artigo 1.815-A: “Em qualquer dos casos de indignidade previstos no art. 1.814, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória acarretará a exclusão imediata do herdeiro ou legatário indigno”.

A mudança é paradigmática, pois eliminou-se a necessidade de propositura de ação declaratória de indignidade nos casos em que já existe uma sentença criminal condenatória definitiva. A exclusão, agora, opera-se de pleno direito, automaticamente, a partir do momento em que não cabe mais recurso da decisão que condenou o herdeiro pelo crime.

O objetivo foi claro: desburocratizar, conferir celeridade e, acima de tudo, poupar a família da vítima de um novo e doloroso processo judicial.

3. A Aplicação da Lei no Tempo e o procedimento adotado no caso Spitzner

No Direito, especialmente no campo sucessório, vigora o princípio do tempus regit actum, ou seja, “o tempo rege o ato”. Isso significa que a lei aplicável a um determinado fato é aquela que estava em vigor no momento em que ele ocorreu.

Portanto, a nova lei não pode retroagir para regular o caso de Tatiane, de modo que sua família, para impedir que Luis Felipe Manvailer receba qualquer parte da herança, teve de seguir a via processual vigente à época dos fatos, através da propositura da ação de indignidade.

A condenação definitiva de Manvailer pelo assassinato de Tatiane servirá como prova robusta, de modo que o resultado final da ação declaratória proposta pela família, que se encontrava suspensa aguardando o trânsito em julgado da sentença penal condenatória — a exclusão —, tende a ser o mesmo daquele que seria obtido pela lei nova.

O que muda é o caminho a ser percorrido, um pouco mais longo e doloroso, que é, justamente, o que a nova legislação procurou eliminar.

Escrito por:

Thaís Malachini Azzolin
Advogada – Integrante do Setor Cível

Deixe uma resposta